Os caminhos dos sabores: uma viagem histórica sobre a comida do tropeiro
A comida típica paulista ainda existe em muitos fundões do Vale do Paraíba. Ela é simples e saborosa, além de ter “sustança”, como se diz na cultura caipira. Nasceu com a chegada dos europeus e dos negros que, juntamente com os indígenas, criaram boa parte dos pratos nacionais.
- Por Rogério
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A comida típica paulista ainda existe em muitos fundões do Vale do Paraíba. Ela é simples e saborosa, além de ter “sustança”, como se diz na cultura caipira. Nasceu com a chegada dos europeus e dos negros que, juntamente com os indígenas, criaram boa parte dos pratos nacionais.
Durante os séculos, muitas receitas foram modificadas, com a inclusão de novos ingredientes. Em muitos casos, o prato melhorou, mas, em outros, perdeu a tradição histórica.
A contribuição de diversos povos propiciou variadas receitas, destacando as preparadas com mandioca, milho, cana-de-açúcar e carne de porco. Surgiram, dessa maneira, o virado, ou feijão tropeiro, as paçocas, as doçarias e quitandas, o uso das pimentas e o fogado da região, típico do Vale do Paraíba, em São Paulo.
Veja também: Afogado ou Fogado: como preparar este tradicional prato caipira
E como esses sabores viajaram de norte a sul no Brasil, durante pelo menos quatro séculos?
Através dos tropeiros que, por necessidade de seus negócios ou trabalho em alguma fazenda, eram obrigados a cortar as trilhas em meio à mata.
Com suas andanças, foram levando sabores, trocando produtos e fazendo a mistura que hoje praticamos em nossa cozinha. Muitos pratos, como o virado de feijão – ou virado paulista – nasceram nesse tempo.
Nas entradas e bandeiras, que saíam de São Paulo para desbravar o sertão, parte do pessoal plantava, de trecho em trecho, alimentos que poderiam ser colhidos em apenas três meses.
Em alguns casos, homens ficavam vigiando a plantação de milho, feijão e mandioca, para, depois da colheita, seguirem o rastro da comitiva e levarem os alimentos; em outros, esse grupo saía na frente e esperava a comitiva, já com a colheita feita.
Com a chegada da bandeira no local do plantio, o feijão era cozido junto com as carnes de animais caçados no caminho e o milho transformado em quirera fina e misturado ao feijão. Fazia-se, assim, um prato forte que era apreciado pelos viajantes. Veio daí a frase e o conselho para quem ia viajar pelas matas do Brasil. "Para comer, vai se virando como os paulistas".
“Se virando” transformou-se, com o tempo, em “virado paulista”, atualmente preparado com farinha de milho, torresmo e lingüiça.
Também desse período é o feijão tropeiro, feito com carne seca, lingüiça, torresmo frito e farinha de milho. Era calórico dessa forma, para proporcionar energia aos homens, durante as grandes jornadas Brasil afora. Mas o tropeiro era sábio, na medida em que viajava apenas quatro léguas (24 km) por jornada ou por dia. Nasceram, assim, nossas cidades, pois, nos pousos, surgiam ranchos, com os atendimentos necessários.
Em pouco tempo, transformavam-se em vilas e, depois, em cidades, afastadas, em média, 25 km umas das outras.
Toda comitiva de viagem dispunha de um pilão. A paçoca era a alimentação principal, pois levava-se carregamento de farinha de mandioca ou de milho. No caminho, matavam-se os animais do mato ou pescava-se. O produto conseguido era “moqueado” (assado), à moda dos índios, que, na época, trabalhavam como carregadores. Eram eles que ensinavam os segredos da caça e da pesca pelas matas.
Depois de secas, essas carnes eram jogadas no pilão junto com a farinha e socadas até formar uma massa grossa. Assim, a carne assada ficava seca e podia ser transportada por muitos dias.
Dois quilos de carne seca e dez de farinha alimentavam muita gente. A paçoca era colocada nas patronas. Mesmo caminhando
ou montando em animais, os homens podiam alimentar-se.
Para completar, consumiam um pedaço de rapadura. Comer somente a carne – como, às vezes, vemos em filmes – era impensável, pois não se podia parar muito tempo para caçar. Era preciso caminhar constantemente. Se um homem roubasse carne, sua morte era certa.
Na região do Vale do Paraíba e nas serras gaúchas, o pinhão foi o grande alimento dos viajantes, já que essa castanha demora até quatro meses para estragar.
Também no Vale, a tradição de comer içá foi destacada por Monteiro Lobato, que não abdicava dessa iguaria.
No século XVIII, durante o ciclo do ouro, a comida ficou ainda mais valiosa. Pela quantidade de pessoas que se deslocou para as Minas, a produção agropecuária naquela região tornou-se escassa. Nesse contexto, entraram os tropeiros paulistas, transportando
tudo o que fosse possível e ganhando muito dinheiro com isso.
Alguns produtos, como o sal e o açúcar, chegavam a valer até quatro vezes o preço de São Paulo.
Boa parte desses viajantes buscavam as mercadorias no Vale do Paraíba, em São Paulo. Muitos homens dessa região foram responsáveis pela fundação de várias cidades do Sul de Minas Gerais.
O cardápio tropeiro
Mandioca
Os primeiros viajantes que chegaram ao Brasil descreveram muitas belezas e curiosidades desta terra.
Um item que chamava a atenção era a alimentação dos silvícolas. Por isso, em vários escritos, mencionam que os índios se alimentavam de uma raiz branca, chamada inhame ou carás, que eram os nomes que eles conheciam. Mas logo observou-se que não era bem isso. Na realidade, o índio chamava essa raiz de manioca, hoje conhecida como mandioca.
Desse tubérculo eles faziam farinha, mingaus e até uma bebida alcoólica, que os europeus aprenderam a saborear.
Com a chegada dos equipamentos e da sabedoria dos europeus, sua lida foi melhorada, transformando-se na famosa farinha que conhecemos até hoje em um dos tripés básicos da alimentação no Brasil.
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Milho
Junto com a mandioca, os exploradores descobriram outra novidade: o milho, alimento milenar descrito pelos viajantes que se encantaram principalmente com o de pipoca, que virava "flor", quando jogado no fogo.
O milho moído nas famosas "pedras de ralar" virava quirera ou fubá grosso. Assim, era cozido e saboreado. Os índios não tinham o hábito de misturar os alimentos.
Moqueavam a carne, cozinhavam o milho, faziam a farinha de mandioca e comiam em separado, jogando o alimento direto na boca.
Existem ainda pelos sertões os caipiras que conseguem colocar um punhado de farinha na boca, sem derrubar nada.
Cana-de-açúcar
Pela necessidade, os europeus trouxeram a cana e a técnica de fazer o açúcar. Em pouco tempo, a produção de rapaduras, açúcar mascavo e melado tornou-se o grande negócio, principalmente nos engenhos do Nordeste, cuja produção era enviada para o Sul. Aos poucos, os engenhos alastraram-se, de modo que cada região tinha sua produção.
Com o açúcar abundante, a doçaria, regalia dos senhorios, ficou popular. Nessas circunstâncias, bastou pegar as frutas tropicais abundantes, colocar num tacho e deitar açúcar: estava inventado mais um sabor brasileiro.
Outra inovação foi a cachaça, que fez a fortuna de muitos engenhos, e que ganha cada vez mais espaço em mercados strangeiros.
Porco
Os colonizadores trouxeram consigo suas criações, incluindo carneiros, cabritos, galinhas, gansos, cavalos e gado. Mas o animal que mais se adaptou, devido ao clima úmido e à falta de pastagens, foi o porco.
Bastava soltá-lo numa pequena mata que ele se virava, revirando pântanos e comendo raízes. Desse modo, o porco virou, em pouco tempo, a fonte principal de gordura para a alimentação diária. Esse nutriente, aliás, os índios já retiravam-no dos porcos do mato, antas e outros grandes animais.
A banha de porco, além de tempero, tornou-se "geladeira" dos alimentos, pois era utilizada para conservar todo tipo de carne.
Por isso, há a famosa "carne na banha", prato encontrado em muitas pequenas cidades do interior.
Feijão
Os índios tinham seus feijões tropicais. Os portugueses, por sua vez, sempre apreciaram feijão, principalmente o branco. Os negros já adoravam o feijão preto. Isso tudo foi chegando e entrando porta adentro das nossas cozinhas, formando muitos pratos apreciados até hoje.
Adicionando-se o arroz, vindo com os europeus, formou-se o prato mais famoso do Brasil: o arroz com feijão.
Carne-de-sol
O tropeiro levava sempre carnes e toucinho salgados para agüentar a viagem.
O que muita gente não sabe é que, para tirar o sal do toucinho, o cozinheiro usava um artifício muito simples. Cortava o alimento em pedaços, colocava numa panela e adicionava mais um punhado de sal. Quando a água estava começando a ferver, ele mexia bem e eliminava todo o líquido, deixando o toucinho sem sal.
É conhecida a expressão "estou por cima da carne-seca", cuja origem relaciona-se ao fato de o tropeiro que possuía o mantimento ser considerado rico.
Eram os tropeiros de tropas de fazenda. Os outros, que trabalhavam por conta própria, eram os jornadeiros e raramente tinham essa vantagem. Por isso, para dizer que se estava bem, usava-se essa expressão.
Fogado Secular
Um dos pratos mais característicos da região do Vale do Paraíba é o afogado, mais conhecido como ”fogado”.
Sua história remonta há mais de um século. De acordo com antigos cozinheiros, fazendeiros e pesquisadores, o prato nasceu de forma muito simples.
Consta que os fazendeiros matavam as vacas mais velhas para fazer carne-seca, cujo modo de preparo ajuda a conservar e amolecer a carne endurecida pela idade dos animais.
As patas eram rejeitadas pelos senhores, mas aproveitadas pelos escravos e, posteriormente, empregados das fazendas.
Essas partes eram cortadas e colocadas em grandes panelas, apenas com água e sal, por uma noite inteira, "afogando" em fogo brando, para amolecer.
Com certeza vem daí o nome "afogado" ou, popularmente, "fogado".
Um detalhe é que o prato não tinha gordura, somente o mocotó e o tutano do osso, que lhe davam um sabor especial.
O molho era à base de urucum, alho, cheiros verdes, alfavaca, hortelã e pimenta. Esses dois últimos ingredientes ajudariam na digestão, segundo os negros, responsáveis pela adição à receita.
O depoimento do 'Seu' Sebastião Benjamim, que faleceu com 103 anos, confirma as informações sobre o surgimento do prato:
"Meu pai, José Antonio Cassiano, pegava as pernas do boi, queimava e raspava bem o couro, tirando os pêlos. Retirava o casco e cortava em pedaços. Colocava num panelão de ferro, com água e sal, e deixava afogando a noite toda. No outro dia, retirava os pedaços de ossos e temperava com o colorau, alho, hortelã e alfavaca. Tava pronto pra comer, fazendo no prato, um pirão com farinha de mandioca, que era feita em casa mesmo".
A comida do tropeiro
Apesar de ter à disposição imensa variedade de alimentos, quer na natureza, quer nos pousos e fazendas em que parava, o tropeiro alimentava-se no dia-a-dia com uma comida que, embora simples e prática, tinha muita "sustança", como eles mesmos diziam.
A alimentação básica em sua jornada era feijão, arroz, carne-seca e toucinho. Havia, também, os acompanhamentos, como farinhas de milho e de mandioca, sal, alho, açúcar e pó de café.
Logo de madrugada, o madrinheiro, um jovem, acordava e colocava o feijão para cozinhar, enquanto os outros arreavam a tropa e colocavam as cargas nos animais. Depois de cozinhar o feijão, fritava-se o toucinho, completando-o com farinha de milho, de forma a preparar um feijão tropeiro bem gordo. Esse era o café da manhã.
O resto do feijão cozido, sem tempero, era colocado num caldeirão e levado no "saco de trem" para o almoço do caminho. Na parada, o madrinheiro fritava mais torresmo, tirando o excesso de gordura. Juntava, então, o feijão já cozido aos temperos e à farinha de milho, fazendo, novamente, o feijão tropeiro.
Os mais abastados acresciam carne-seca e lingüiça defumada ao feijão. O arroz podia tanto ser simples como misturado com pedaços de torresmo frito, fazendo, assim, o arroz tropeiro.
Para completar, fazia-se o café, fervendo a água e adicionando o pó e o açúcar. Retirava-se a bebida do fogo e colocavam-se dois pedaços de carvão, com o propósito de decantar o pó, de modo que nem o coador era necessário.
O tropeiro tinha um equipamento básico de cozinha, o "jacá de caldeirão", feito de bambu. Nele, eram colocados um casal de panelas (caldeirão e panelinha) de ferro, pratos, canecas, colheres e uma ciculateira. Nesse conjunto, ia também a trempe, que consistia em três ferros: dois para fincar e um para servir como travessa, onde eram penduradas as panelas. Em alguns casos, esse equipamento era improvisado com madeira verde e usado uma só vez.
Havia, ademais, o "saco de trem", que consistia em um saco branco com mais saquinhos dentro, nos quais se guardava feijão, arroz, farinha de mandioca, sal, açúcar, alho, toucinho salgado e pó de café.
Como se vê, apesar de não haver nada sofisticado, a alimentação tinha muita “sustança”, conforme as necessidades dos pesados dias de caminhada.
Desde São Paulo até o Rio de Janeiro, por exemplo, levavam-se até 15 dias de jornada.
Texto original de João Rural (1951-2015), www.chaocaipira.org.br
João Rural teve uma vida dedicada à defesa, preservação, fortalecimento e divulgação da cultura caipira. Em 40 anos de pesquisa, reuniu um acervo de 300 horas de vídeo e filme 8mm, 70.000 fotos e 7.000 páginas estimadas em livros, jornais e revistas, em que foi fotógrafo, redator, revisor, diretor, editor, tal como fez em diversos programas para a televisão. Esse foi o sentido, até quixotesco, da jornada de João Evangelista de Faria aqui na Terra. Nascido em 1951, faleceu em junho de 2015.
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Tags: virado paulista comida caipira comida tropeira cultura caipira no vale do paraiba
Sobre o autor
Rogério
@rogeriogolob
Meu nome é Rogério Golob, sou criador do site Guia Vale do Paraíba. Sou apaixonado por natureza, fotografia e vídeos, e gosto de compartilhar minhas experiências e dicas dos lugares que visito. Minha missão com este projeto é inspirar outros viajantes a explorarem diferentes lugares da região.
1 comentário
Muito legal. Sempre tive curiosidade sobre a vida dos tropeiros. Essa jornada diária descobri empiricamente. Estou aqui em cima do Vale do Paraíba, em Piracaia, com um passado cheio de tropeiros. São João do Curralinho, Peão... Já peguei muita passagem de boiada pela porteira do sítio. Já pilei milho, amendoim e carne, para a famosa "paçoca de carne".
Bons tempos e excelentes recordações.
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